21 de abr. de 2012

Até aqui

Dinoê Urbano / César Serrazes
Não errei o suficiente.
Não andei o suficiente.
Não amei. Não voei. Não cai.

Duvidei. Hesitei. Temi.
Acreditei, mas permaneci.
Transgredi e me arrependi.


Carrossel de voltas viverá
sem que eu nele suba.


Qual será
O meu próximo passo na grande roda?
Eu vi o que havia ou havia mais?
Para ser visto e agarrado com todos os dedos, toda a vontade.

Esse será 
O meu próximo passo na infinita rota:
Errar mais, andar mais, amar.
Voar e cair, e levantar.

Duvidar para reconhecer.
Hesitar para prosseguir.
Acreditar ou não, abrir o peito e os braços
Feito asas para pular.

Carrossel de voltas, cavalos decorados
Para a apresentação sempre igual.
Mundo de gente que não é multidão, é um cada um:
Posso apertar todas as mãos, cumprimentar todos os rostos?

O que é que eu posso
Senão errar e acertar?



24 de mar. de 2012

Para Gabi


Conheço uma Gabriela,
de um amor apegado
Despojado em suas funções,
esquecido dele mesmo.

Conheço uma Gabriela,
de uma amizade pactual.
Vedada, maciça,
uma bandeira hasteada.

Conheço um sentimento por Gabriela,
entroncado nas entranhas.
Ligado pela semelhança,
pela doçura do semblante.

Conheço Gabriela
Ou uma parte dela
Que, pra mim, é a totalidade
De um presente celestial.

Se um dia a amnésia,
Se apresentar a esse meu conhecer.
Desastrosos, tropeçarão um no outro
E rirão, como Gabriela e Dinoê.


31 de mai. de 2011

Matéria de Gaveta

Cenira ajeita os jornais enquanto segura uma garrafa de refrigerante. Os movimentos curtos e calculados parecem não distraí-la da minha conversa com seu irmão. Estão velhos. Os jornais. Eles e os jornais. Sentada dentro da banca, oferece o líquido gasoso. “Não, obrigado”, digo. Cirico aceita e ela lhe oferece um copo de vidro pela metade.
“Estão querendo tirá-la de mim. Depois de oitenta anos!”
Com o canudo na boca, Cenira balança a cabeça em reprovação e desdém. Talvez ela quisesse verbalizá-los, mas a bebida lhe parece mais interessante.
“Isso aqui é herança do meu pai”, Cirico continua, apontando a minúscula banca castigada pela ferrugem. “Nossa banca distribuía setenta exemplares entre revistas e jornais. Agora eles querem...” O barulho da britadeira toma a fala dele. O mercado municipal passa por reforma. Obra do projeto de “Revitalização do Centro Histórico”. Não tive coragem de perguntar o que ele acabara de me dizer. Parece estar irritado demais para repetir a ladainha. Leva o copo na boca e toma o primeiro gole daquela bebida que já deveria estar quente, como aquela tarde.
Um sujeito engravatado para diante da banca e observa os jornais expostos. Será que está interessado nos velhos? Nos irmãos? Nos jornais?
Sem trocar uma palavra com Cenira ele toma o jornal do dia e deposita duas moedas na mão dela. No mesmo instante, ela retira uma pequena caixa de papelão cheia de notas e moedas e coloca ali a quantia.
“Já levei um soco na cara”
Cenira solta a declaração do nada, o que fez me sentir como alguém que chega atrasado a uma peça de teatro e fica sem entender nada até o próximo ato.
“Perdi dois dentes, ó!” Aponta o buraco na gengiva.
Eles já foram assaltados duas vezes. Até derrubaram a banca, certa vez. A prefeitura talvez esteja certa em tirá-los dali.
“Quando Deus fez o homem, onde ele colocou a mão?”
Não há dúvidas. Eu definitivamente estou num teatro e agora acabo de chegar do toalete, perdendo mais um ato daquela peça. Cirico começou a jogar adivinhações? Mas ele não estava irritado?
Depois de alguns segundos contemplando os olhos inquietos ao ansiar por me dar a resposta logo, eu digo: “Na cabeça?”
“Logo acima do punho!”
Rio alto da minha estupidez. Cenira, porém, não manifesta nenhum tipo de sentimento. Cansada de ouvir piadas velhas, talvez?
Afinal, o que há de novo ali? A edição do jornal que o homem engravatado lê nesse momento? Eu? O mercado?
“Você pode me contar sua história, Cirico?” Pergunto.
“Ah, não. É muita coisa. Se quiser, eu conto a história da banca”
Extra! Extra!

11 de mai. de 2011

Sonhos Úmidos

Memoráveis noites de chuva
Refrescam o meu rosto afáveis pingos.
Olhos fechados, sonhos abertos:
Telhas débeis não suportam
A força do céu em me fazer sonhar.

Deitados sobre o colchão de palha
Os meus
- que adormcem primeiro -
Os pingos parecem não tocar.
Sonhos secos podem morrer
Se não os regar a água do céu.

Afogado está o pó de minha casa.

O chão batido ainda testemunhará
Frutos de tempos próximos.
Calmo, paciente, espero
Sente-se aqui, felicidade,
Prometo que não vai demorar.

7 de abr. de 2011

A Conquista da Noite

Medo. Ainda me lembro das noites em que me visitava. Como os gatos que preferem a vida noturna, o medo ficava à espreita esperando a ordem “vamos dormir” de minha mãe. Para mim, uma criança como qualquer outra, a ordem se assemelhava à sentença de um juiz “leve-o para a execução”. Até hoje me pergunto o porquê de tanto medo. Era a noite apenas, mas eu precisava me sentir seguro. Felizmente, minha irmã compartilhava do mesmo dilema, de uma forma mais exagerada, eu diria. Assim, era ela que armava os esquemas para que nós passássemos a noite na fortaleza.
Toda noite, um pouco antes de sentarmos no sofá para o ritual “novela das oito”, minha irmã me puxava num canto e cochichava:
- O que a gente vai fazer hoje?
Certa vez, eu respondi:
- Estava pensando em inventar uma música.
Parecia idiota essa idéia, mas nunca duvidei do poder da Arte sobre os pais. Incrível como simples rabiscos conseguem arrancar a mais sincera aprovação de uma mãe.
- Ótima idéia! Nós podemos começar assim ó: “mamãe, deixa eu dormir no seu quarto”.
Minha irmã sempre foi direta ao pedir algo. Eu não queria fazer assim, mas também não queria brigar com ela. Eu sempre perdia. Fizemos então uma melodia com uma entonação estridente na expressão “no seu quarto”. Pronto!
Depois da novela, minha irmã e eu, lado a lado, com as mãozinhas para trás, inclinando o corpo de um lado para o outro para marcar o tempo da música, cantamos em uníssono aquela melodia horrorosa.
- Vão pegar os colchões logo antes que eu me arrependa! Disse minha mãe.
O tom áspero não diminuía a nossa euforia. O medo estava derrotado, pelo menos durante aquela noite. Colocamos os colchões no chão ao lado da cama e dormimos tranquilamente. Eu sempre colocava o meu do lado de minha mãe. Ela sempre estendia a sua mão para que eu a segurasse até dormir.
Outro dia nasceria, outras noites viriam. Nossas idéias para convencer nossa mãe estavam ficando escassas e descabidas, assim como nossa idade para sentir medo.
Chegou o dia em que estávamos proibidos de entrar novamente na fortaleza, mas ainda tínhamos um ao outro. Minha irmã me fazia empurrar a minha cama pra junto dela e ficávamos jogando adivinhações até que o sono viesse. O jogo era simples: escrevíamos algo no ar com o dedo e o outro tinha que adivinhar o que era. O engraçado é que ela sempre pegava no sono quando era minha vez de escrever. Eu sempre ficava acordado sozinho enfrentando o medo, o que me fez criar resistência a ele.
Hoje minha irmã ainda não dorme sem que uma luz esteja acessa em algum lugar da casa. Eu, porém, construí minha própria fortaleza e durmo tranqüilo.

21 de mar. de 2011

Mensageiros das Ruas

Era uma noite comum na capital, não para mim, um interiorano que estava apenas de passagem. Quando me vi sozinho na estação do metrô, um sentimento de pavor misturado ao de liberdade se apossou de mim. Entrei no movimento frenético das pessoas. Andava rápido na mesma direção da massa. Não me atrevia a encarar ninguém, mesmo que esbarrassem em mim. Afinal, não haveria tempo para me desculpar, muito menos encontrar a pessoa em que eu havia esbarrado. O jeito era permanecer indiferente a tudo, assim como todo mundo na grande marcha da vida cotidiana da cidade grande.
Entrei em um vagão e permaneci perto da porta por medo de não conseguir sair quando chegasse o meu destino. Segurando-me firme no trem, comecei a pensar naquele dia que estava chegando ao fim quando ouvi um grito do fundo do vagão: “A palavra do Senhor diz...” Por uma fração de segundo, pensei que se tratava de um assalto. Olhei atônito para o lugar de onde vinha aquela voz. Era um homem de meia idade, barba parcialmente grisalha e de olhos fundos. Calçava chinelos de dedo, uma calça desbotada e uma camiseta de propaganda por baixo de um casaco azul. Tinha em suas mãos uma Bíblia desgastada e um pouco amassada. Percebi que o povo dentro do trem ainda mantinha a mesma expressão indiferente da estação, como se o homem não estivesse ali. Ninguém o olhava, muito menos prestava atenção ao que ele dizia. Atentei-me ao discurso do pregador, desviando o olhar quando ele vinha em minha direção. Falava energicamente de princípios familiares, de fidelidade, de como Deus se agradava daquilo e como o mundo estava se acabando por não crer. As veias saltavam-lhe do pescoço enquanto pregava. Talvez ele estivesse vivendo um daqueles pesadelos em que se grita sem que ninguém possa ouvir. Eu o ouvia, mas não me atrevi a dar sinais de atenção. Será que as pessoas que estavam ali faziam o mesmo?
Quando desci na estação Tietê, olhei para trás na tentativa frustrada de agradecer pela mensagem. Era tarde demais. Dentre as faces desfocadas dos que desciam junto comigo, eu o vi parado dentro do trem, quieto, esperando o movimento cessar para poder continuar o discurso. Estava claro que aquele homem não esperava que alguém lhe desse algo pelo seu trabalho, seu prazer talvez estivesse em tornar conhecida a mensagem que levava.
É interessante como as pessoas podem parecer iguais quando são contempladas no meio de uma multidão. No terminal rodoviário, via as mesmas pessoas da estação, como se um elenco de figurantes tivesse sido contratado para contracenar comigo o filme daquela noite.
Comprei minha passagem, desci até as plataformas de embarque. O clima pareceu-me um pouco mais humano. As pessoas conversavam entre si, trocavam sorrisos, abraços, até olhares desconfiados. Uns falavam de trabalho, outros do atraso do ônibus. Uns falavam do tempo, outros do presidente. Permaneci em pé e, depois de olhar para o relógio, bufei ao me dar conta que teria que esperar mais meia hora em pé.
Foi quando percebi no meio do burburinho uma melodia bem suave vindo das escadas rolantes. Virei-me para ver de onde vinha. Era um jovem de pele morena que tocava violão e cantava uma canção cuja letra se resumia em “Jesus ama você!”. Aquele reggae chamou a atenção de muitos. Alguns riam de escárnio, outros o ignoravam. O jovem mantinha o sorriso no rosto e tentava olhar para os que o ouviam. Desse modo, ele passou por mim e desapareceu no meio da multidão. Não carregava um chapéu ou algo que lhe servisse de salva para que pudessem lhe dar dinheiro por sua música. Assim como o homem do metrô, o objetivo era apenas transmitir aquela mensagem.
Aquele episódio fez com que eu me esquecesse do desconforto nas pernas por estar há mais de uma hora e meia em pé. Quando finalmente o ônibus chegou, embarquei e deixei a cidade com aquela melodia na cabeça.
Cheguei ao meu destino, mas ainda precisaria pegar mais um ônibus para chegar em casa. O carro dessa vez estava vazio. A noite já era avançada quando um casal de idosos entrou e meu deu um “boa-noite”. Ambos estavam bem vestidos e perfumados. Ele com um terno escuro e ela em um vestido azul por baixo de um xale preto. Julguei que tivessem acabado de sair de algum culto no centro da cidade, pois carregavam duas Bíblias consigo.
Tudo estava calmo, como aquela noite. O ônibus estava no meio do percurso, quando entrou mais um sujeito. Era um homem um pouco sujo. Tinha o olhar cansado e um pouco vermelho. Assim que entrou, percebi que ele não tirava o olho do casal de idosos. Não demorou muito para que ele se aproximasse e pedisse educadamente: “Vejo que vocês são de igreja. Vocês poderiam lembrar-se de mim nas suas orações?” O velho imediatamente respondeu que sim e retrucou: “Você não parece bem. Aconteceu alguma coisa?” O homem hesitou por um momento, olhou pra baixo e continuou. “Minha história é muito longa, meu senhor, mas creio em Deus e creio que Ele poderá ouvi-los.”
Nesse momento a velha tomou a palavra: “Ele também pode ouvi-lo, se você orar!” “Não...” respondeu emocionado, “Acho que estou muito sujo e não é só a minha roupa, se é que me entende”
Vendo que estava chegando ao seu destino final, o velho pediu o telefone daquele homem e acrescentou: “Não existe pecado que possa separar o homem que se arrepende”
Despediram-se enquanto o casal descia. Aquele homem chorou por uns minutos e logo desceu também.
Eu fiquei sozinho naquele ônibus pensando em tudo o que me ocorreu naquela noite. Quem eram aquelas pessoas? Por que estavam fazendo aquilo?
Quando desci lembrei-me do versículo que diz: “...quão formosos são os pés dos que anunciam a paz”

28 de fev. de 2011

Casa Abandonada

O mesmo vento sopra sobre minha face. O mesmo cenário me cerca. As mesmas dificuldades me frustram. Mantenho os rituais que nunca me levaram a lugar algum e talvez nunca levem. Não procuro respostas ousadas. Talvez devesse. A tradição me prendeu em minha própria apatia. Tudo permanece do mesmo jeito. A velha casa abandonada. Os móveis cobertos por lençóis brancos que escondem a beleza e a nostalgia do passado. Eu sou a casa. Espero silenciosa e pacientemente uma perturbação. O ruído dos sapatos sobre o assoalho estragado, sem brilho. As vozes abafadas entre as paredes. A luz do sol sobre os livros da estante ou a luz artificial sobre a mesa de jantar. Se a casa fosse novamente habitada, não haveria rotina, tampouco mesmice. Cada dia uma nova canção pra cantar. Sorrisos para contemplar. Lágrimas para compreender. Histórias pra se ouvir. Ombros para se recostar. Entretanto, o que o resta agora é a esperança sufocada nos escombros do porão. Ela permanecerá viva até ser encontrada e, assim, trazida para a luz. O mesmo vento sopra sobre minha face. O mesmo cenário me cerca. E a esperança ainda pulsa.