31 de mai. de 2011

Matéria de Gaveta

Cenira ajeita os jornais enquanto segura uma garrafa de refrigerante. Os movimentos curtos e calculados parecem não distraí-la da minha conversa com seu irmão. Estão velhos. Os jornais. Eles e os jornais. Sentada dentro da banca, oferece o líquido gasoso. “Não, obrigado”, digo. Cirico aceita e ela lhe oferece um copo de vidro pela metade.
“Estão querendo tirá-la de mim. Depois de oitenta anos!”
Com o canudo na boca, Cenira balança a cabeça em reprovação e desdém. Talvez ela quisesse verbalizá-los, mas a bebida lhe parece mais interessante.
“Isso aqui é herança do meu pai”, Cirico continua, apontando a minúscula banca castigada pela ferrugem. “Nossa banca distribuía setenta exemplares entre revistas e jornais. Agora eles querem...” O barulho da britadeira toma a fala dele. O mercado municipal passa por reforma. Obra do projeto de “Revitalização do Centro Histórico”. Não tive coragem de perguntar o que ele acabara de me dizer. Parece estar irritado demais para repetir a ladainha. Leva o copo na boca e toma o primeiro gole daquela bebida que já deveria estar quente, como aquela tarde.
Um sujeito engravatado para diante da banca e observa os jornais expostos. Será que está interessado nos velhos? Nos irmãos? Nos jornais?
Sem trocar uma palavra com Cenira ele toma o jornal do dia e deposita duas moedas na mão dela. No mesmo instante, ela retira uma pequena caixa de papelão cheia de notas e moedas e coloca ali a quantia.
“Já levei um soco na cara”
Cenira solta a declaração do nada, o que fez me sentir como alguém que chega atrasado a uma peça de teatro e fica sem entender nada até o próximo ato.
“Perdi dois dentes, ó!” Aponta o buraco na gengiva.
Eles já foram assaltados duas vezes. Até derrubaram a banca, certa vez. A prefeitura talvez esteja certa em tirá-los dali.
“Quando Deus fez o homem, onde ele colocou a mão?”
Não há dúvidas. Eu definitivamente estou num teatro e agora acabo de chegar do toalete, perdendo mais um ato daquela peça. Cirico começou a jogar adivinhações? Mas ele não estava irritado?
Depois de alguns segundos contemplando os olhos inquietos ao ansiar por me dar a resposta logo, eu digo: “Na cabeça?”
“Logo acima do punho!”
Rio alto da minha estupidez. Cenira, porém, não manifesta nenhum tipo de sentimento. Cansada de ouvir piadas velhas, talvez?
Afinal, o que há de novo ali? A edição do jornal que o homem engravatado lê nesse momento? Eu? O mercado?
“Você pode me contar sua história, Cirico?” Pergunto.
“Ah, não. É muita coisa. Se quiser, eu conto a história da banca”
Extra! Extra!

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